Erdogan quer alargar acordo dos cereais (e invadir o norte da Síria)
Presidente turco reúne-se esta sexta-feira com Putin. Ancara quer que os acordos para o Mar Negro sirvam de base para uma trégua. E o assentimento para uma operação contra os curdos.
No dia 19 de julho, Vladimir Putin e Recep Tayyip Erdogan encontraram-se em Teerão. Três dias depois, a Ucrânia, a Rússia, a Turquia e as Nações Unidas assinaram em Istambul os acordos sobre a exportação de cereais e de produtos agrícolas através do Mar Negro. “Temos orgulho justificado em preparar o caminho para esta iniciativa que desempenhará um papel significativo na resposta à crise alimentar global”, disse então o presidente turco, que volta a encontrar-se esta sexta-feira com o homólogo russo, desta vez em Sochi, cidade banhada pelo Mar Negro.
A diplomacia turca, além de vender o acordo como uma vitória sua, ambiciona que este funcione como uma base para que as partes em conflito alcancem uma trégua. Até lá sucedem-se os ataques, como o registado na região de Donetsk, onde oito pessoas morreram e quatro ficaram feridos ao serem atingidos por artilharia russa enquanto esperavam o autocarro.
Três navios devem partir esta sexta-feira da Ucrânia com cereais, anunciou o ministro da Defesa turco Hulusi Akar, enquanto um cargueiro – o primeiro desde o início da invasão russa – chegará a um porto ucraniano, no caso Chornomorsk, um dos três visados nos acordos, ao lado de Yuzhne e Odessa. “O cargueiro turco Osprey S, hasteando a bandeira da Libéria, dirige-se do estreito de Dardanelos para o porto de Chornomorsk”, informou o porta-voz da administração regional de Odessa. No início da semana Kiev disse que tem 16 navios carregados com cereais e prontos a zarpar.
Razoni, o primeiro navio a deixar a Ucrânia, carregado com 26 mil toneladas de milho tendo como destino o Líbano, mostrou a comprovação do conceito” de que o acordo se pode manter, disse a equipa de inspeção formada por pessoal ucraniano, russo, turco e das Nações Unidas, depois de esta ter verificado o cargueiro em Istambul, como previsto.
Três navios com cereais devem partir esta sexta-feira da Ucrânia enquanto um cargueiro turco chega ao porto de Chornomorsk.
Na esperança de que todas as partes cumpram os acordos – que protegem apenas as infraestruturas portuárias diretamente ligadas às exportações de alimentos contra ataques, não obrigando a Rússia a deixar de atingir silos ou outras instalações de armazenamento de cereais noutros locais ou a deixar de incendiar campos de trigo – o presidente ucraniano Volodymyr Zelensky disse ao homólogo da Guiné-Bissau, Umaro Sissoco Embaló, que o seu país está pronto para ser um garante da segurança alimentar do mundo.
O bloqueio naval russo no Mar Negro fez com que a Ucrânia tivesse de recorrer ao transporte ferroviário e viário, mas com uma eficácia muito baixa. Ao não conseguir exportar em quantidades significativas, tendo em conta que há mais de 20 milhões de toneladas de cereais por escoar, os preços globais dos alimentos dispararam, tornando as importações proibitivas para alguns dos países mais pobres.
É neste ambiente de moderado otimismo que Erdogan vai visitar Putin. Na agenda está a guerra na Ucrânia e o líder turco poderá pressionar o russo para que Moscovo volte à mesa das negociações. O ministro dos Negócios Estrangeiros Mevlut Cavusoglu, que esta quinta-feira discutiu a aplicação do acordo dos cereais com o secretário-geral da ONU António Guterres, disse também que o acordo sobre os cereais “tem de ser sustentável, e todos devem agir de forma responsável e cumprir os seus compromissos para continuar este fluxo”, embora reconheça que “a situação é frágil, porque a guerra na Ucrânia continua”. Daí que para a Turquia, disse Cavusoglu, haja esperança de que o acordo de Istambul seja “a base para um cessar-fogo abrangente, a base para um plano de paz e para paz duradoura” na região.
As relações de Ancara com Moscovo são uma mistura de rivalidade e cooperação e estão interligadas do norte de África ao Cáucaso, passando pelo Médio Oriente, com uma parceria sólida em matéria de energia. Desde a invasão russa, a Turquia fez um delicado equilíbrio entre Kiev e Moscovo e procurou ser mediador. Em março, a Turquia recebeu delegações russas e ucranianas em Antália e Istambul para conversações de cessar-fogo, embora ambas as iniciativas diplomáticas tenham falhado. Apoiou a Ucrânia, mantendo o acordo de venda de drones Bayraktar, e fechou os estreitos turcos a embarcações militares russas que não operam no Mar Negro. Mas, ao contrário dos outros países da NATO, não aderiu às sanções contra a Rússia, e permitiu que aviões russos atravessassem o seu espaço aéreo.
É neste exercício de equilibrismo que Erdogan deverá, mais uma vez, pedir a Putin para que o exército russo permita uma operação militar turca contra os curdos no norte da Síria sob o pretexto da “segurança nacional” e da luta contra o terrorismo. Ancara considera o YPG, que lutou na primeira linha contra o Estado Islâmico, uma filial do Partido dos Trabalhadores do Curdistão (PKK, organização terrorista). Contra esta hipótese, 102 deputados franceses assinaram um texto que critica as intenções de Erdogan, já publicitadas pelo próprio.