“Há um retrocesso claro na defesa dos direitos das mulheres”
É através de um relato onde a dor e o trauma predominam que conhecemos Mimi, a protagonista do novo romance de Julieta Monginho, “Corpo vegetal”. Tradutora de profissão, conhece um famoso escritor norte-americano, Samson X, cujo livro se encontra a traduzir, mas o encontro em Lisboa não corre como o esperado. Sentindo o corpo invadido, diz-se vítima de agressão sexual; versão negada pelo escritor.
Mais do que atestar a veracidade do relato, Monginho afirma ter querido “seguir a voz de uma mulher que se questiona consigo mesmo ao longo do livro”. Apesar de o tema ser tratado do ponto de vista feminino, a autora acredita que “as pessoas mais frágeis, independentemente do género, podem ser confrontadas com situações semelhantes”.
Com uma longa carreira como magistrada, durante a qual lidou com inúmeros casos de violação e abusos sexuais, a vencedora do Grande Prémio de Romance e Novela da APE em 2008 e 2021 até admite que esse conhecimento lhe pode ter sido útil, ao poupar-lhe precioso tempo de pesquisa. Mas não foi em busca de uma simples transcrição da realidade que se sentiu impelida a abraçar este projeto.
Avessa a modas, a romancista quis problematizar a questão, ao arrepio do simplismo que hoje vigora. Em grande parte devido às redes sociais. “Há pouco debate sobre questões profundas, porque o algoritmo favorece assuntos mais leves ou insultos. É um verdadeiro ditador”.
A experiência judicial em situações similares permite-lhe ter ainda a noção clara de que o sistema continua a ser “muito enviesado” nestas matérias, como se “a vítima nunca fosse totalmente inocente”. Muitos desses vieses partem das próprias mulheres, em clara maioria nos tribunais. “Apesar de já não vermos tantos acórdãos estapafúrdios, a cultura patriarcal ainda está muito arreigada entre as mulheres”, acusa, admitindo que a lentidão do sistema faz com que por vezes se procure fazer justiça através do cancelamento mediático. O que “pode ser pernicioso”, porque pode contribuir “para juízos apressados”.
Se na Justiça a mudança tem sido mais lenta do que se desejaria, há campos ainda mais preocupantes. Por causa “do discurso da extrema-direita que vai impregnando as narrativas políticas e dos cidadãos”, a autora de “Um muro no meio do caminho” mostra-se convicta de que “há um retrocesso claro na defesa dos direitos das mulheres”, colocando em causa “conquistas que nos pareciam cristalinas”.
No drama de Mimi, Julieta Monginho quis convocar também alguns dos estereótipos que rodeiam os casos de abusos sexuais, associando-os apenas aos estratos económicos mais desfavorecidos. Afinal, defende, “qualquer situação de poder em relação a alguém é capaz de dar azo a estas situações”.
Ao contrário do que sucedeu noutras realidades, os casos públicos de denúncia de assédio nunca atingiram o patamar de visibilidade noutros países. Para a escritora, esse défice está longe de ser uma boa notícia, porque significa que “há encobrimento”.
“Sem querer apontar o dedo a ninguém”, optou por escolher um suposto abusador “o mais afastado possível” da realidade portuguesa. “Um romance não serve para denunciar, mas para levantar questões”, reforça.